A internet
perdeu um de seus mais brilhantes sonhadores, ativista, prodígio da computação,
escritor. Essa perda trágica repercute intensamente pela internet, como uma
onda de dor, espanto e indignação. Mais e mais sites publicam relatos, declarações,
notícias.
Esse rapaz,
os quais os sites de notícia não se cansam de sublinhar que sofria de
depressão, sofreu os efeitos da máquina de moer do Departamento de Justiça dos
Estados Unidos. Acusado de “roubar” milhões de artigos científicos ele enfrentava
um processo judicial que poderia resultar em 35 anos de prisão caso fosse
considerado culpado. No centro desse processo se instalou uma séria
controvérsia que deixa uma marca indelével sobre o direito de todas as pessoas
ao acesso ao conhecimento e à informação, ao livre exercício dos direitos civis
e das liberdades individuais.
Aaron
Swartz, aos 13 anos foi o ganhador do ArsDigita Prize, uma competição para
jovens criadores de websites não-comerciais que fossem úteis, colaborativos e
voltados para atividades educacionais. O prêmio incluiu uma visita ao famoso
Massachusetts Institute of Technology (MIT), que mais tarde seria protagonista
dos eventos que o levaram ao suicídio.
Aos 14 anos,
Aaron integrou a equipe de criadores do RSS 1.0, um recurso bacana de
leitura de sites através de atualizações em tempo real, os famosos feeds.
Eu adoro!
Aos 15 anos,
integrou a equipe que desenhou as licenças Creative Commons.
Na
sequência, fundou uma start-up, que depois se fundiu à rede social
Reddit, onde ele desenvolveu a plataforma que a levaria ao sucesso. E cujo
desenho também resultou na base de sites Open Library, ou seja,
bibliotecas abertas, e no Archive.org, uma espécie de máquina do tempo
da internet. E esta seria sua vida e sua bandeira a partir de então: o acesso
ao conhecimento e à informação, sua disponibilização online gratuita através de
plataformas abertas, o desenvolvimento técnico dessas plataformas.
Especialmente o acesso ao conhecimento e à informação públicas e geradas a
partir de recursos públicos. Suas atividades profissionais nunca visaram à
obtenção de lucro e promoção pessoal. Sua genialidade está presente em dezenas
de projetos semelhantes.
Crítico de
filmes e pesquisador, seu blog tinha um enorme público. Entre 2010 e 2011, foi
bolsista do Laboratório de Ética Edmond J. Safra na Harvard University, onde
pesquisava sobre corrupção institucional. Fundou e era líder do DemandProgress.org,
uma plataforma inteligente de ciberativismo.
Aaron foi
uma das vozes fortes contra o SOPA-Stop Online Piracy Act, um projeto de
lei contra a pirataria online proposto pelo poderoso setor de propriedade
intelectual e direitos de autor, a indústria fonográfica e de cinema. Mas o
projeto de lei, de fato, iria endurecer as leis a tal ponto que sequer
mencionar um texto num blog seria considerado um ato ilegal, estrangulando o
direito à liberdade de expressão.
Aaron, junto
com Shireen Barday, “baixou” e analisou por volta de 440 mil artigos acadêmicos
da área de Direito para determinar o tipo de financiamento que os autores
receberam. Os resultados, publicados no Stanford Law Review, levaram a
trilhar os caminhos dos fundos públicos para pesquisa. Por causa de sua
capacidade de processar grandes quantidades de dados era requisitado para
colaborar com vários outros pesquisadores. Disto resultou o projeto theinfo.org,
que chamou a atenção do Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
O theinfo.org
tornou livre e aberto o acesso a uma imensa base de dados públicos somente
disponível gratuitamente através de máquinas instaladas em 17 bibliotecas em
todo o país, o que obrigava as pessoas interessadas a se deslocar até os pontos
de acesso ou, então, pagar 10 centavos por peça. Foram aproximadamente 20
milhões de páginas da Corte Federal, algo de tirar o fôlego. Ele deixou muita
gente brava com essa façanha, a tal ponto que começou a ser investigado pelo
FBI, contudo sem consequências.
Mas a
história foi bem diferente com o MIT. Ainda no Laboratório de Ética de Harvard,
em 2011, Aaron se utilizou do acesso aberto do MIT para coletar por volta de
4,8 milhões de artigos científicos, incluindo arquivos da base JSTOR
muito conhecida no mundo acadêmico. O caso veio a público, creio, quando ele
foi preso em julho de 2011.
A
controvérsia sobre se seria roubo ou não foi substituída pelo debate sobre se
era correto a cobrança por artigos científicos cujas pesquisas são financiadas
com dinheiro público. Sobre a mercantilização e privatização do conhecimento
científico, direitos de autor e os custos para tornar esses materiais disponíveis.
Uma campanha de apoio a Aaron e o manifesto Guerrilla Open Access, escrito por
ele em 2008, ganhou outra vez visibilidade (uma tradução
pode ser encontrada aqui).
Segundo a
ONG Electronic Frontier Foundation, embora os métodos de Aaron fossem
provocativos, os seus objetivos eram justos. Ele lutava para libertar a
literatura científica de um sistema de publicação que tornava inacessível essa
produção para a maior parte das pessoas que realmente pagaram por isso, quer
dizer, todas as pessoas que pagam impostos. Essa luta deveria ser apoiada por
todos.
As coisas
começaram a tomar outros rumos com o declínio do debate. Após a devolução das
cópias digitais dos artigos, a JSTOR decidiu não apresentar queixa contra
Aaron. Mas a façanha desta vez resultou num processo por crime cibernético por
parte do governo dos Estados Unidos munido pelo MIT. Em seu desabafo ao saber
do suicídio, Lawrence
Lessig escreveu:
Logo no
início, para seu grande mérito, JSTOR compreendeu que era “apropriado”
desistir: eles declinaram de dar prosseguimento à sua própria ação contra Aaron
e pediram ao governo para fazer o mesmo. O MIT, para sua grande vergonha, não
foi limpo, e então o promotor teve a desculpa que ele precisava para continuar
sua guerra contra o “criminoso” que nós amamos e conhecemos como Aaron.
O
Departamento de Justiça dos Estados Unidos interpretou a ação de Aaron como
crime de roubo e a demanda foi levada ao grande júri que decidiu que ele
deveria ir a julgamento. Então, a máquina de fazer moer do governo começou a
funcionar.
Primeiramente,
Aaron foi acusado de quatro crimes todos relativos à violação de sistema
informático. Mas depois o Departamento de Justiça, numa atitude de
“exemplaridade”, acrescentou mais nove acusações, todas contidas na Lei de
Abuso e Fraude Informática, e atos de conspiração.
Além disto,
familiares e amigos, como Lawrence Lessig, relatam situações de intimidação por
parte do Departamento de Justiça. Alex Stamos,
especialista em crimes cibernéticos, além de inúmeras
outras vozes, desmontam item por item o exagero forçado na perseguição a Aaron,
a verdade sobre o “crime”.
O efeito
cascata dessas acusações resultaram na possibilidade
real de Aaron Swartz ser condenado a 35 anos de prisão e
multa de 1 milhão de dólares!!!
Lawrence
Lessig diz:
Aqui, é onde
nós precisamos de um melhor sentido de justiça e de vergonha. O que é
ultrajante nesta história não é apenas [o que aconteceu com] Aaron. É também o
absurdo do comportamento do promotor. Bem desde o início, o governo trabalhou
tão duro quanto pode para caracterizar o que Aaron fez da forma mais
extrema e absurda. A “propriedade” que Aaron “roubou”, nós fomos
informados, valia “milhão de dólares” — com a dica, e então a sugestão, que o
seu objetivo de obter lucro com o seu crime. Mas qualquer um que diga que se
pode ganhar dinheiro com um estoque de ARTIGOS ACADÊMICOS é idiota ou
mentiroso. Estava claro o que disto não se tratava, mas o nosso governo
continuou a pressionar como se tivesse agarrado terroristas do 11/09 com
a boca na botija.
Não consigo
imaginar o que passou com esse rapaz de personalidade introvertida,
apresentando um quadro de depressão, à medida que a data do julgamento se
aproximava. Sua solidão, seu medo diante deste quadro kafkiano. Sua morte me
pareceu daqui de longe uma forma de exílio. Como o exílio do protagonista das
tragédias gregas. A morte é a condenação ao exílio da República que não permite
a existência dos poetas.
No sábado,
ainda sob o impacto do acontecimento, sua família fez um comunicado público,
culpando as autoridades judiciais e o MIT. O documento afirma que essa morte
não é apenas uma tragédia pessoal, mas sim um produto de um sistema de
justiça criminal repleto de intimidações, o qual iria punir uma pessoa por
um alegado crime que não fez vítimas.
Essa última
parte é a chave de todo o enredo, pois para a aplicabilidade da lei com a qual
Aaron seria julgado era necessário uma série de aspectos todos ausentes dos
atos cometidos.
O funeral
será realizado nessa terça-feira, 15 de janeiro, em Illinois.
Como tributo
a comunidade ciberativista criou uma página
com o objetivo de ser um grande e espontâneo repositório de produção acadêmica
colocada a disposição de todas as pessoas de forma gratuita e aberta.
Todas as
pessoas estão convidadas a disponibilizar seus trabalhos em qualquer idioma. No
twitter acompanhe pela hashtag #pdftribute.
O JSTOR publicou suas
condolências imediatamente e o MIT
anunciou que vai investigar sua responsabilidade na morte de Aaron,
mas para mim este anúncio beira o cinismo.
E o que nós aqui no Brasil temos com isso?
Bom, a
internet foi concebida como uma plataforma sem fronteiras físicas e
territoriais. E quando ocorre um evento, triste ou alegre, seja onde for, que
está relacionado ao âmago do funcionamento desse incrível sistema isso nos
interessa.
O
aperfeiçoamento técnico da internet e seu sistema regulatório é, também, de
grande interesse de todos, sobretudo quando este aperfeiçoamento está
relacionado com o acesso ao conhecimento e à informação, ao livre exercício dos
direitos civis e das liberdades individuais.
Em relação à
produção científica vale lembrar que o governo brasileiro tem tido uma
participação importante na formação de uma cultura de acesso aberto e gratuito.
Embora de maneira, por vezes, contraditória.
Mas deixando
as idiossincrasias de lado… a área de saúde é um belo exemplo de acesso
compartilhado ao conhecimento com a instalação, no Brasil, da BIREME, em 1967, cujo objetivo é contribuir com
o desenvolvimento da saúde fortalecendo e ampliando o fluxo de informação em
ciências da Saúde. Dela, em 2002, surgiu o projeto Scielo, uma biblioteca
eletrônica que abrange uma coleção selecionada de periódicos científicos
brasileiros que se expande pela América Latina.
No início
dos anos 2000, em consonância com a o debate global, é lançado o Manifesto
Brasileiro de Apoio ao Acesso Livre à Informação Científica com vários setores
e órgãos do governo brasileiro entre os apoiadores da inicitiava (leia aqui
e aqui).
Contudo, a
sucessão de eventos desde a cópia dos milhares de artigos científicos até o
processo judicial e o incremento da pena — resultando na absurda possibilidade
de Aaron ser condenado a 35 anos de prisão mais multa — serve de alerta para a
necessidade de nós mesmos repensarmos e revisarmos estrategicamente as recentes
leis aprovadas no nosso Congresso Nacional sobre cibercrime, além da debilidade
política e conceitual a que chegou o Marco Civil.
Nós não
estamos distantes de absurdos como o caso de Aaron! Em terras tupiniquins
outros absurdos já acontecem por causa do uso excessivo das leis de
difamação e persistência das leis de desacato.
De: Magaly Pazello